Diálogos cruzados: infância, juventude e educação. (Neusa Maria Mendes de
Gusmão)
Por Edineia Koeler
Na
cultura ocidental, vícios e invisibilidades marcam alguns limites de
compreensão sobre segmentos sociais que portam marcas tidas como de diferença.
Os diferentes são aqueles que, não são imediatamente aceitos pela sociedade, e
introduzem na ordem social um ruído capaz de desestabilizar a sociedade. A
criança e o adolescente são exemplos disso. (p. 363)
Toda
criança quando nasce já entra no mundo classificada, o que configura uma
violenta domesticação a qual reage o domesticado e essa reação por sua vez é
incompreendida. A ordem instituída pela modernidade exige que a sociedade
coloque sob controle a infância e a juventude, esse controle resulta do fato de ambos estarem
abertas a experiências podendo portanto transgredir a ordem instituída. Esse é
um comportamento de risco que os transforma em sujeitos potencialmente
“perigosos” pois seus comportamentos expõe o mundo vazio constituído pela
sociedade.(p. 365)
Compreender
a criança e o jovem significa não reduzi-los a nossa semelhança enquanto
adultos, mas assumirmos, com eles, as suas diferenças. Só assim os adultos se
fazem sujeitos significantes em relação à criança e ao jovem. Só assim é
possível o encontro dos dois mundos (adulto e infanto-juvenil). (p. 366)
Por
esta razão, falar de educação desafia o conhecimento já produzido e expõe a
necessidade de se compreender o que é a diversidade social para assim se
construir caminhos de acesso a ela.
Educadores são sujeitos socioculturais, o local onde o professor atua, a escola,está sujeita a uma
complexa rede de relações sociais,cujo teor envolve um complexo processo de
“construção de saberes culturais e sociais que fazem parte do acontecer
humano”. O acontecer humano, por sua vez, envolve a experiência social no
interior de uma sociedade que se globaliza em situações nem sempre harmoniosas.
A
proposta desse texto é discutir a emigração de crianças e jovens negros de
origem africana numa sociedade que não os reconhece como sendo dali. Uma
sociedade que através da escola se propõe a educá-los, para que não coloquem em
risco a ordem estabelecida. Trata-se do bairro Quinta Grande em Lisboa, um dos
chamados “bairros de lata”. (p. 368)
Os
“bairros de lata” se espalharam em Lisboa decorrentes do processo de
globalização, da eliminação de fronteiras nacionais e da implementação do
mercado de bens e de trabalho. Nesses
bairros se estabelecem formas de coabitação pluriétnica e constroem uma relação
de pertença ao lugar. É simultaneamente lugar de cooperação, solidariedade e
conflito que demarcam sentimentos de “pertença” e de identidade.
Quando
crianças desses bairros chegam à escola, esta não reconhece a bagagem cultural
que trazem consigo e, ao não reconhecê-la, nega as crianças, um lugar ativo no
tecido social.
A
questão da língua é considerada exemplar (p. 373). As crianças têm dificuldades
na escola devido à língua falada em casa. O problema, segundo o diretor da
escola de Quinta Grande está no currículo escolar e na estrutura do ensino em
Portugal que despreza as expressões em crioulo e pune as crianças que não
conseguem acompanhar as demais. A ordem que pune é a mesma que propõe uma
educação de cunho multicultural. Aí se revela a distancia entre teoria e
prática.
O
que está em questão (p. 374) é o fato das crianças transitarem entre dois
reinos psíquicos e culturais distintos e conflitantes_ a língua falada em casa
usada para expressar afetividade e sentimentos e a douta exigida pela escola
como condição de participação social.
A
autora cita o exemplo do aluno Nuno (p. 374) que chega a escola sem falar português, porém em três meses a aluno já
domina a língua, mas a professora continua a não falar o crioulo de Nuno, e sem
entender o português, que todos os colegas da sala já compreendem (inclusive a
pesquisadora).
A
dúvida que a história de Nuno coloca é: até que ponto a língua é a verdadeira
barreira? Segundo a autora, diversos
autores afirmam que a língua é apenas a face visível de um acentuado contraste
entre sistemas ideológico-culturais distintos e que o âmago da questão está no
conflito entre a cultura imposta pela escola em detrimento das marcas da
oralidade que configura a tradição africana desses grupos de imigrados.
É
nesse sentido (p. 376) que a fala de um cabo-verdiano pode ser entendida, ao
dizer que “as crianças africanas ouvem histórias e são educadas de um modo
muito diferente do que é em Portugal”. As crianças africanas, mesmo as nascidas
em Portugal, tem dificuldades na escola, mas afirmam saber o que é ensinado
pelos professores. Os professores têm dificuldades de compreender os modos de
ser, estar dessas crianças e necessitam entender melhor a cultura que
vivenciam, já que em casa vivenciam diariamente a cultura de seus pais. (A
sensibilização do professor, nesse sentido, pode levá-lo a buscar alternativas
para sua prática pedagógica ou pode levá-lo à indiferença com relação ao aluno
que foge ao padrão).
O
contexto social (p. 379) que um imigrante africano encontra em Portugal é
adverso. Diz o diretor “num país de mercado livre é assim que as coisas
funcionam, primeiro o dinheiro e depois a pessoa humana”. Com isso, a medida
que a criança cresce, a escola vai ficando vai ficando cada vez mais longe de
si, um espaço que mais o expulsa do que
o acolhe. E nesse “não se sentir bem” fica para sempre fora da escola sem
sequer concluir as etapas do ensino básico. Nesse movimento sérios danos se
concretizam quanto á possibilidade de sua integração e acolhimento na sociedade
onde está e na qual vive (p.380).
Assim
a subjetividade do social e de si mesmos liga-se a condição objetiva de sua
vida- globalização, imigração- e as relações que lhes são próprias, entre elas,
a pobreza, a estigmatização e o racismo e, ainda os sonhos e os desejos de
consumo com os quais lhe acena a sociedade para dizer-lhe o que não tem e o que
não pode ter. Diante da violência desse mundo reagem os jovens, formando grupos
com os quais confrontam o mundo português por meio de comportamentos, atitudes
e ações vistas como “incivilizadas”, “perigosas”. Mostram, assim, uma outra
“linguagem”, o seu lugar no mundo, mas raramente são ouvidos.
A autora
finaliza o texto analisando a escola com olhar antropológico, onde segundo ela,
encontra-se em jogo um modelo de cidadão “civilizado” e em acordo com os moldes
europeus, que penaliza o diferente atribuindo-lhe características negativas nas
relações próprias do convívio social. Ainda de acordo com a autora, sob o
pretexto de oferecer igualdade de oportunidades, o que se promove é, na
verdade, um modelo de criança (branca, católica, portuguesa, etc ) pela qual
todas as demais deverão se pautar. Baseada em Cortesão (1993) a autora
complementa dizendo que o que a escola e o seu corpo docente faz, está em
consonância com o sistema social e politio vigente. Caberia, portanto perguntar
o que cabe a educação? A manutenção da ordem ou sua transformação? (p.385).
GUSMÃO, N. M. M. . Diálogos cruzados: infância, juventude e educação.
In: Marcos Cezar de Freitas. (Org.). Desigualdade social e
diversidade cultural na infância e na juventude. São Paulo:
Cortez, 2006, v. , p. 363-389.